Virgílio Gomes da Silva era potiguar. Nasceu em
Sítio Novo, no ano de 1933. Filho de camponeses – Sebastião e dona Isabel, que
se retiraram para o Pará, no ano de 1942, fugindo de uma terrível seca. O casal
teve dez filhos, dos quais apenas seis se criaram. Em 1945, depois se de
separar do marido, dona Isabel voltou com os filhos para o Rio Grande do Norte
e se estabeleceu em Jucuri, hoje pertencente ao Município de Lagoa dos Velhos;
ficou com o pai apenas a única filha mulher, Creuza.
Em 1951, Virgílio foi sozinho buscar meio de vida
em São Paulo, onde também queria estudar. Lá trabalhou em várias empresas e
como autônomo, tendo exercido profissões diversas. Começou numa lanchonete, a
seguir numa companhia telegráfica, banco, vigia de uma companhia de bebidas,
etc. Aliás, já emigrou trabalhando, pois saiu de Natal como ajudante de um
caminhoneiro, o que lhe garantiu transporte e alimentação até a capital
paulista.
Com a economia do salário, comprou uma pensão
próxima ao Brás e levou toda a família para São Paulo. Sua mãe é que
administrava a pensão, que servia refeições para os trabalhadores do entorno,
enquanto Virgílio continuava trabalhando no Banco e na Antárctica. Sempre
quisera ter um bar, por isso aceitou a troca proposta por um conhecido, que o
enganou, pois o prédio era hipotecado. Resultado: Virgílio foi à falência.
De “louco do rádio” a militante exemplar
Depois de trabalhar numa metalúrgica, Virgílio
ingressou na Nitro Química, de onde saiu para o Sindicato dos Trabalhadores na
Indústria Química e Farmacêutica de São Paulo, como funcionário, e, a seguir,
como dirigente e líder sindical.
Foi no ano de 1957 que ingressou no Partido
Comunista Brasileiro (PCB). Segundo Creuza, sua irmã, Virgílio sempre fora
muito católico, mas ingressou no PCB porque enxergou nele uma proposta concreta
para pôr fim às injustiças, que muito o sensibilizavam. “Ele aceitou o
comunismo, ser do Partido, pelo que prometia a igualdade dos povos, que ninguém
ia passar fome, que todo mundo ia estudar, ia ser igual; ele, que veio da
miséria, não suportava ver tanta miséria, e por isso aceitou ser comunista”.
A Nitro Química era uma empresa muito importante
para São Miguel Paulista e para o país. Por isso, foi marcante a greve dos seus
operários, em 1957, que saiu da fábrica para as ruas e envolveu pelo menos um
terço da população. Virgílio já era líder sindical e militante do PCB. A greve,
que durou nove dias, não foi importante para ele apenas pelo êxito da
mobilização e do resultado vitorioso – aumento de 20% – mas também por ter
conhecido uma operária ativista com quem se casou: Ilda Martins da Silva. Tinha
origem camponesa, como ele, só que do interior paulista, de Lucianópolis. O
casamento aconteceu no dia 21 de maio de 1960.
Ilza já conhecia Virgílio de nome e voz e o
chamava de “louco do rádio”. É que ele participara, anos antes, de um concurso
da rádio Record, que dava um prêmio para quem passasse mais tempo dançando. Ele
resistiu por 48 horas e ganhou utensílios domésticos mais um terreno no Litoral
paulista.
O casal teve três filhos e uma filha: Vlademir
(homenagem a Lenin), em1961; Virgílio Gomes da Silva Filho, o Virgilinho
(1962); Gregório, em 1967 (a mãe homenageara o pai dela, e Virgílio celebrara
Gregório Bezerra, o grande líder camponês (leia A Verdade, nº…). Isabel, a
última (1969), nasceu quando o povo brasileiro já vivia uma terrível noite de
agonia, após o golpe dentro do golpe. Parte do enxoval da menina foi
presenteada por Carlos Marighella (leia A Verdade, nº…), a quem Virgílio
acompanhara na dissidência do PCB paulista.
Empunhando armas
A militância política de Virgílio se intensificou
no início dos anos 60; a família passa a sentir mais a sua ausência, que ele
compensa com muita ternura nos momentos em que está no lar. Amante da Natureza,
adorava pássaros, e tinha um viveiro; também amante do esporte, especialmente
de futebol, era torcedor fanático do Corinthians.
Em 1963, liderando três mil operários da Luftalla
em greve, foi atingido de raspão na cabeça, além de mão e perna, por disparos
efetuados por um diretor da empresa. Recuperado, foi transferido para a sede do
Sindicato, na Rua 25 de Março, na Capital.
O seu sindicato foi o primeiro a sofrer
intervenção após o golpe civil-militar de 1964. Toda a diretoria foi cassada e Virgílio
preso no dia 2 de outubro, mas ficou somente uma semana detido. Fugindo da
perseguição, seguiu para o Uruguai, mas ali permaneceu apenas por três meses.
No retorno, não conseguiu mais emprego; sobrevivia como vendedor ambulante, fotógrafo, e acabou abrindo outro bar, chamado Galo de Ouro, numa homenagem a Éder Jofre, famoso lutador de boxe, de quem era fã.
No retorno, não conseguiu mais emprego; sobrevivia como vendedor ambulante, fotógrafo, e acabou abrindo outro bar, chamado Galo de Ouro, numa homenagem a Éder Jofre, famoso lutador de boxe, de quem era fã.
Ao romper com o PCB, por sua inatividade diante
da Ditadura, Marighella levou consigo um bom número de militantes paulistas,
entre os quais Virgílio. Criaram o Agrupamento, que se transformou em Ação
Libertadora Nacional (ALN).
Sua irmã, Creuza, e a esposa, Ilda, apelaram para
que ele não desse esse passo, pois achavam que não havia possibilidade de a
guerrilha ter êxito e que ele deveria criar os filhos. Virgílio não cedeu. Ao
contrário, levou para a clandestinidade a esposa e os filhos e ainda puxou para
a ALN o seu irmão Francisco Gomes, que não tinha militância anterior. Segundo
remanescentes da ALN, ele foi mais para mostrar ao irmão que era tão “macho”
quanto ele.
Virgílio esteve em Cuba no período de agosto de
1967 a julho de 1968. Encontrava-se em treinamento na Serra de Escambray, um
dos santuários da guerrilha do Movimento 26 de Julho, quando tomou conhecimento
da morte de Che Guevara na Bolívia. Feitas as devidas homenagens, voltaram a
empunhar o fuzil, como queria “El hombre muerto” ou, como dizemos hoje, que
acabara de ingressar na imortalidade.
Quando volta ao Brasil, Virgílio já encontra a ALN imersa na luta armada no meio urbano, como forma de captação de recursos para a guerrilha rural, a partir de 1969, objetivo estratégico, que já tinha uma área definida em Goiás, onde ex-militantes do PCB agora se tornavam sua base de apoio.
Quando volta ao Brasil, Virgílio já encontra a ALN imersa na luta armada no meio urbano, como forma de captação de recursos para a guerrilha rural, a partir de 1969, objetivo estratégico, que já tinha uma área definida em Goiás, onde ex-militantes do PCB agora se tornavam sua base de apoio.
Virgílio, agora conhecido como Jonas, foi
designado para o Grupo Tático Armado (GTA) de São Paulo e participou de várias
ações de expropriação de dinheiro, armas e explosivos. Mas a maior ação de que
participou se deu no Rio de Janeiro.
Na “Semana da Independência”, “jogando água no
chopp da burguesia”, que celebra uma emancipação que nunca existiu, a ALN e a
Dissidência da Guanabara DI-GB), numa ação conjunta espetacular, sequestram o
embaixador da maior potência imperialista do mundo, os Estados Unidos da
América do Norte, Charles Burke Elbrick. A ação se deu entre os dias 4 e 7 de
setembro de 1969. O comando político foi de Joaquim Câmara Ferreira e de outro
representante da Dissidência, já o comando militar ficou a cargo de Virgílio.
Os guerrilheiros, posteriormente, desculparam-se
com o embaixador da coronhada que tiveram que dar em sua cabeça, porque ele se
recusava a acompanhá-los. Passada a tensão inicial, quando tiveram certeza do
atendimento das exigências (manifesto à nação lido em cadeia nacional de rádio
e televisão e 15 presos políticos transferidos e seguros em solo mexicano), o
diplomata passou a dialogar amigavelmente com os militantes. No seu depoimento
aos órgãos de segurança, mentiu para protegê-los, dizendo que eles usavam
capuz, portanto não poderia identificá-los, e chegou a afirmar que se possível
testemunharia a favor deles. Sua carreira diplomática acabou.
Manoel Ciryllo Neto, um dos participantes da
ação, recusa-se a denominá-la de sequestro. “A gente capturou o embaixador de
uma nação inimiga, que ajudou a planejar, executar e respaldar o Golpe de
Estado”. Até mesmo os órgãos de repressão, nos registros da época, não
qualificam a ação de sequestro. Um chama de rapto, outro expropriação.
“Foi um golpe de mestre”, afirma o historiador
Jacob Gorender no livro Combate nas Trevas. A repercussão foi positiva em nível
nacional. Como explica frei Betto, em Batismo de Sangue, “O fato inusitado, às
vésperas do 7 de setembro, fora como o vento que reacende o fogo sufocado sob o
monturo, trazendo à tona sentimentos antiamericanos represados entre camadas
inferiores do inconsciente de um povo…” .Marighella, inicialmente criticou o
GTA-SP por ter realizado a ação sem discutir na Organização e sem o GTA do Rio
sequer tomar conhecimento. O pessoal aceitou a última falha, mas a primeira,
não, argumentando que o lema definido pelo próprio Comandante era de que “não
se pode licença para praticar ato revolucionário”, recomendação constante,
tanto dos princípios da ALN como do famoso Minimanual do Guerrilheiro Urbano,
escrito por ele.
Mas Carlos Marighella avaliou como positiva a
ação; inclusive, numa Saudação aos Quinze Patriotas, disse: “Estamos certos de
que o povo brasileiro aprova a atitude da Ação Libertadora Nacional e dos que
com ela participaram”.
Infelizmente, embora exitosa, a ação marcou o
início do fim, como afirma frei Betto na obra citada. Imediatamente após a
libertação de Elbrick, a repressão se abate pesada sobre a ALN. Virgílio foi
preso no dia 29 de setembro, vinte e poucos dias após a ação, no apartamento da
família do militante Aton Fon Filho. Tinha 36 anos. Reagiu a bala, depois a
socos e pontapés, mas acabou dominado, encapuzado e levado para a sede da Oban,
na Rua da Tutoia, bairro do Paraíso.
Não é preciso descrever as torturas; elas já são
por demais conhecidas. Apenas registrar que, para surpresa dos torturadores,
nos momentos em que lhe tiraram do pau-de-arara, Virgílio atracou-se com eles
como podia. Enquanto tinha voz, gritava: “Filhos da puta, vocês estão matando
um brasileiro!”.
O herói resistiu a 12 horas de tortura,
respondendo a cada pergunta, apenas: “Meu nome é Virgílio Gomes da Silva”.
Morreu com a cabeça inteiramente esmagada, uma massa disforme. Um delegado do
Dops, Orlando Rezende, contou chorando ao advogado da família de Virgílio, Dr.
Décio Nascimento: “Nunca vi uma coisa tão bárbara como aquela”.
Os órgãos da repressão não assumiram, claro, a
prisão e morte de Virgílio, que se tornou o primeiro desaparecido político
brasileiro. Ele foi condenado à revelia e teve um mandado de prisão expedido em
sua busca, um bom tempo depois.
Família vítima da sanha repressora
A família de Virgílio também sofreu dura
repressão. Sem contar o irmão, Francisco Gomes, que passou dez anos preso e
acabou prestando informações à repressão, por não resistir à tortura. A casa em
que moravam foi invadida no dia 30 de setembro. Vlademir, então com nove.anos,
lembra que estavam com o tio Francisco. Era um bando de 30 homens. Levaram
preso Manoel Cyrillo (que se encontrava ali), mãe e filhos separados. Ilda foi
para a sede da Oban, onde foi torturada com choques elétricos, socos e
pontapés, depois Presídio Tiradentes, de onde saiu em junho de 1970. Somente no
Tiradentes, veio tomar conhecimento da morte de Virgílio. As crianças foram
conduzidas para um Juizado de Menores, localizadas dias depois e resgatadas
pela tia Creuza.
Após a libertação, juntou-se aos filhos e, com a
ajuda de Rose Nogueira (leia A Verdade, nº…) seguiram para Cuba, de onde só
voltaram em 1990, após a formatura da filha caçula. Todos conseguiram trabalho
e mantiveram a família junta, exceto a mãe e a irmã de Virgílio, que voltaram
para o Rio Grande do Norte. Dona Isabel não suportava viver no mesmo lugar em
que residiam os assassinos do seu filho.
Pela punição dos torturadores
No ano de 1993, atendendo a requerimento do então
deputado Nilmário Miranda, o Supremo Tribunal Federal (STF) requereu e obteve
resposta da Marinha brasileira, informando que Virgílio “morreu em 29 de
setembro de 1969 ao reagir a bala, quando de sua prisão em um aparelho”. Em
2004, no arquivo do Dops (SP) foi localizado um documento no qual é
identificado o cadáver de Virgílio, e em 2009, é encontrado um documento do
Centro de Informações do Exército (CIE), no qual consta que “Virgílio Gomes da
Silva (Jonas ou Borges) reagiu violentamente desde o momento de sua prisão,
vindo a falecer antes mesmo de prestar declarações”.
Tais informações, além do testemunho dos
sobreviventes que presenciaram sua tortura e morte, foram mais do que
suficientes para a Comissão dos Mortos e Desaparecidos do Ministério da Justiça
reconhecer a responsabilidade do Estado brasileiro e conceder indenização à
família, com fundamento na Lei 9.140/95.
Num momento em que a Comissão da Verdade busca
identificar os criminosos da Ditadura, embora a lei não lhe outorgue poder para
processá-los, é importante o depoimento da viúva de Virgílio, Ilda Martins: “Eu
nunca pude enterrar meu marido, levar uma flor ao seu túmulo. Continuo
torturada. Tudo o que queremos é a abertura dos arquivos, a localização do
corpo e, quem sabe, a punição dos torturadores”. A luta continua! Virgílio
Gomes da Silva vive, hoje e sempre!
José Levino é historiador
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